O dia começa a amanhecer. E eles começam a aparecer. No início são poucos, mas em breve eles tomam as ruas da cidade. São os humanos correndo para os seus dias malucos. Eles andam olhando para frente ou para baixo. Sempre orgulhosos ou tristes às vezes orgulhosos e tristes. Eles se acumulam em torno dos sinais fechados e nas filas de elevador, mas não por muito tempo. Em breve eles têm que voltar a correr. Suas ruas estão sujas e gastas, mas eles precisam correr. Acham-se donos da cidade e de si mesmos. O dia passa no seu ritmo entre maiores e menores corridas. Então o Sol vai ficando sonolento e os homens começam a fugir. Conforme as ruas vão ficando desertas os verdadeiros donos das cidades vão surgindo. As pequenas criaturas frutas dos pesadelos e dos erros começam a caminhar atraídas pela escuridão. São baratas e ratos os verdadeiros habitantes daquelas ruas. Os humanos não conhecem as ruas como as suas contrapartes noturnas, pois os humanos só vêm trabalhar e fugir das ruas centrais. Os seres noturnos moram naquelas ruas, reparam em cada detalhe nascem, crescem se reproduzem e morrem naquelas ruas. Os humanos os desprezam, pois sabem que eles são os verdadeiros donos de suas terras de concreto. Criaturas muito mais antigas que a mais brilhante filosofia e o mais primitivo raciocínio de nossos cérebros ultrapassados.
As pequenas criaturas do medo assustam os humanos por dois motivos. Antes de tempos ancestrais elas já se banqueteavam com tudo que o homem desprezava. Uma fruta meio comida, uma carne apodrecida são deliciosos manjares para os esses seres da noite. Isso já desagrada o homem classificador que quer tudo hierarquizar. O homem quer estar no topo e sua mente se contorce de pensar que seres ancestrais possam se maravilhar com o que lhe causa asco. Os humanos querem que seus irmãos ratos e baratas sejam inferiores e infelizes, mas como botá-los nessa categoria se os humanos próprios não são felizes e se seus irmão mais velhos existem em número tão maior? Isso nos assusta, mas não é nada que não podemos ignorar como tanto o mais. O que nos assusta é que a despeito de comerem tudo o que jogamos fora, eles também não se incomodariam de comer o que temos. Um iogurte no lixo pode ser um prêmio para a barata, mas o que não seria um iogurte inteiro?
Nós moramos em casas bem fechadas com trancas, muros e de preferência com outros humanos fazendo guarda. Mesmo assim um serzinho noturno vem voando e se rastejando, entre canos e frestas, tubos e lixos até a segurança do nosso lar. Eles querem fazer ninho em nossas casas e se possível comer nossa comida ou nossos lábios. Revoltamos-nos é claro. Pegamos substâncias de morte, sapatos e terrores para espantá-los tendo muitas vezes sucesso. Mas sabemos que eles querem voltar. Que estão por aí os verdadeiros donos da cidade.
Esses pequenos seres que aumentam diante de nossa visão embotada de sentimentos pavorosos são frutos de nossa própria desgraça. Eles sempre existiram disso ninguém duvida, pois Noé lhes guardou na arca. Só que esses seres tenebrosos foram os únicos sobreviventes de nossa cidade, os outros frágeis animais não resistiram e nem resistiriam ao nosso ódio concretante por tudo o que há de natural. Por que justo as baratas e os ratos sobreviveram de tantos animais? Não sabemos, mas é certo que odiaríamos o que quer que tivesse sobrado. Os animais não nos obedecem o suficiente para viver em nossas cidades sem vigiarmos de perto, só os humanos tem tal peculiaridade. Não se iluda que no centro nevrálgico de nossas maravilhosas urbes um cão vadio pudesse sobreviver sem uma mão para lhe guiar. Cães vira-latas resistem somente em subúrbios onde algum terreno baldio sem utilidade pode lhes abrigar. Na cidade eles morreriam de fome ou comidos pelos ratos. O mesmo pode ser dito de gatos, macacos e tantas aves.
Na noite citadina, enquanto os homens dormem e os pesadelos passeiam pelas ruas, um ser sem nome dorme em bafo etílico. Dizem que ele é homem, mas ele talvez seja um pouco mais vivido para tão banal definição. Ele não pode comer o que comemos, não pode andar onde andamos, não pode entrar onde entramos. Se pensarmos com clareza veremos que ninguém lhe chama homem, mas sim mendigo. Dorme entre os pequenos pesadelos de baratas e ratos cosmopolitas.
domingo, 20 de junho de 2010
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genial, mesmo.
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